Mario Vargas Llosa: o legado de um divisor de águas

O escritor Mario Vargas Llosa — Foto: Juan BARRETO / AFP

RESUMO

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GERADO EM: 14/04/2025 - 19:11

Morte de Mario Vargas Llosa,Nobel de Literatura,gera homenagens globais

A morte de Mario Vargas Llosa,aos 89 anos,gerou homenagens pelo mundo. O autor peruano,foi um expoente do "boom" latino-americano e crítico do autoritarismo. Suas obras,como "A guerra do fim do mundo",refletem a complexa realidade latino-americana e são traduzidas em 60 idiomas. Llosa também foi figura midiática,com vida pessoal e política controversas.

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Legado incomparável”,“caminho para o futuro”,“ficção delicada e questionadora” e “mestre universal da palavra”. A morte de Mario Vargas Llosa,no último domingo,gerou uma série de reações de personalidades da cultura e chefes de Estado pelo mundo. E não poderia ser diferente: o autor peruano passou as últimas décadas da vida viajando ao redor do planeta para coletar os frutos de sua glória,construída em 20 romances,dez peças de teatro,14 livros de ensaios e um livro de memórias,entre outras publicações traduzidas em 60 idiomas.

Leia mais: Vargas Llosa continuou escrevendo mesmo após a aposentadoriaE ainda: Conheça algumas das obras-primas do escritor

Além do Nobel de Literatura em 2010,levou o Cervantes (principal prêmio de língua espanhola) e o Planeta (equivalente espanhol do Jabuti). Ingressou na Academia Francesa sem nunca ter escrito em francês (o primeiro autor a conseguir tal façanha) e era um dos mais prestigiosos correspondentes internacionais da Academia Brasileira de Letras.

Contra o autoritarismo

O peruano se consagrou combinando rigor formal e uma experimentação narrativa que multiplica perspectivas e cria jogos de espelhos. Pontuadas por elementos autobiográficos,suas obras refletem sobre o próprio exercício da escrita e abordam conflitos históricos reais. Outra marca de Vargas Llosa é a crítica social a partir da complexa realidade peruana (e da América Latina de forma geral),tendo sempre como alvo o poder autoritário.

— Sua obra é inconfundível,de altíssimo nível,e vai deixar um grande legado na literatura do continente e na literatura mundial — observa Lívia Reis,professora Relações Internacionais da Universidade Federal Fluminense (UFF),com atuação nas áreas de Literatura Hispano-Americana e Literatura Comparada. — As obras iniciais de Vagas Llosa,como “Conversas no Catedral”,“A cidade e os cachorros”,“Pantaleão e as visitadoras” e “A guerra do fim do mundo”,são,do ponto de vista da escrita literária e das histórias que conta,novas formas de escrita nascidas no continente que se tornaram universais.

Lívia lembra ainda que o escritor surgiu no momento em que a literatura hispano-americana vivia o que posteriormente foi chamado de “boom”. Llosa foi contemporâneo de Gabriel García Márquez,Julio Cortázar,Carlos Fuentes,Alejo Carpentier e outros escritores latino-americanos que também mudaram a maneira de ver e escrever o continente.

— Esse momento foi cortado por questões políticas e de engajamento ideológico e o chamado “realismo mágico” realizou a grande metáfora da América nos contando e ajudando a interpretar as mazelas,do colonialismo e da exploração desde a chegada dos colonizadores até os agitados anos 1960 e 1970 — diz Lívia .

O prestígio literário de Vargas Llosa se confunde com sua presença midiática. Amante dos holofotes,o peruano era assíduo tanto do noticiário político quanto das páginas de variedades. Eterno revoltado,ele dizia ter perdido a fé depois de ter sido abusado sexualmente por um religioso aos 12 anos de idade.

‘Um rebelde’

Casou-se com a sua tia,Julia Urquidi,pouco mais de uma década mais velha do que ele e divorciada (a relação inspiraria um dos seus romances mais bem-sucedidos,“Tia Júlia e o escrevinhador”). Alguns anos depois,ele se casou com sua prima de primeiro grau e sobrinha de sua ex-mulher,Patricia Llosa. Para o júbilo das revistas de fofoca,o autor viveu um relacionamento de sete anos com Isabela Preysler,socialite filipino-espanhola,ex-mulher de Julio Iglesias e mãe de Enrique Iglesias.

“Rompi com minha família para me casar com minha primeira esposa. Em seguida,rompi com minha esposa quando conheci minha companheira seguinte. Também rompi com muitos dos meus amigos por motivos políticos. Agora que falei de todas essas rupturas,você entende por que me considero um rebelde”,explicou ele certa vez à imprensa.

Vagas Llosa: o adeus de um príncipe da inteligência

Antes próximo dos ideais comunistas,Llosa se desencantou com a esquerda e abraçou ideias liberais. Ele se distanciou dos amigos após episódios como sua desilusão com a perseguição de Fidel Castro a dissidentes e a homossexuais — depois de ter sido inicialmente um apoiador da Revolução Cubana.

Soco famoso

Vargas Llosa foi também candidato à presidência de seu país,tendo sido derrotado por Alberto Fujimori,contra quem mais tarde veio a discursar apontando para o autoritarismo do governo do rival. A sua briga com Gabriel García Márquez em 1976 é uma das mais famosas da história da literatura. O relacionamento entre os dois autores terminou abruptamente com um soco do peruano no colombiano (morto em 2014). Até hoje,apesar de rumores de que teria envolvido uma mulher,ninguém sabe ao certo a origem do desentendimento.

Ontem,a Fundação Gabo,criada por García Márquez,lamentou no X a morte de Vargas Llosa,classificando-o como “mestre da narrativa em espanhol e figura fundamental da literatura latino-americana”.

Para a professora Livia Reis,a obra de Llosa “foi paulatinamente embaçada por suas posturas políticas e ideológicas”.

— O legado literário do escritor não condiz com o legado ideológico do homem que abandonou seus ideais e sua visão críticas dos tempos de juventude — diz a pesquisadora.

Livro sobre Canudos

Professor adjunto da Unigranrio,Ricardo Marinho lembra que o Brasil tem uma relação de “filiação” com Vargas Llosa. Em 1981,o autor lançou “A guerra do fim do mundo”,um de seus livros mais celebrados,que revisita a Guerra de Canudos por meio de uma narrativa complexa e polifônica. A partir de múltiplas perspectivas,trata o conflito como um choque entre modernidade e tradição e dá uma nova dimensão a figuras como Antônio Conselheiro.

— Hoje,quem quiser de alguma maneira tentar fazer alguma pesquisa pertinente sobre o teatro do conflito (de Canudos) vai precisar mergulhar no livro de Vargas Llosa — diz Marinho. — Acredito que ele tenha visto em Canudos a imagem da fragilidade de uma república. Imagino que a relação de Vargas Llosa com o Brasil pode gerar mais pesquisas,como suas correspondência com Nélia Piñon e a sua relação com a ABL.

Em nota,a ABL lamentou a morte de seu sócio correspondente,e destacou sua relação com os autores da casa: “Fez grandes amigos na ABL,como Nélida Piñon,a quem dedicou ‘A guerra do fim do mundo’,uma história sobre Canudos,onde passou vários meses coletando informações,considerado por muitos um épico latino-americano”.