A mágoa do negacionista

Homeopatia — Foto: Ana Branco

Quem trabalha com promoção de pensamento crítico e racional e combate às pseudociências conhece bem as estratégias usadas na defesa de crenças injustificadas. É um processo que tende a se tornar acalorado e agressivo quando os fatos ameaçam uma pseudociência de estimação e provam (por exemplo) que homeopatia são bolinhas de açúcar ou que astrologia não explica o comportamento das pessoas e nem prevê o futuro. As táticas são recorrentes e seguem um padrão semelhante ao dos famosos – e folclóricos – cinco estágios do luto.

A crença de que o processo de luto se divide em cinco estágios é lenda urbana,mas infelizmente o paradigma ainda é muito usada para prescrever como as pessoas deveriam se sentir. Deixando bem claro que a analogia aqui é satírica,após vasta experiência sofrendo ataques de negacionistas inconformados,resolvi elaborar,de brincadeira,os cinco estágios da mágoa do negacionista. As etapas,que não necessariamente vêm nesta ordem,são:

Negação: estudos de boa qualidade serão ridicularizados,estudos ruins serão exaltados; “a ciência não explica tudo”; “o método científico não pode ser aplicado a esta prática/doutrina/conhecimento milenar”. Desqualificação do crítico: o autor da crítica não tem as credenciais necessárias. Biólogo não pode falar de medicina,jornalista não pode falar de astrologia,psicólogo não pode falar de psicanálise,físico não pode falar de poder quântico. Apagamento de credenciais: a credencial não é mais inadequada,é inexistente. Etapa muito usada quando o crítico é mulher. Nesse caso,o crítico se reduz a “essa mulher”,“essa senhora” (“essa zinha”,caso o ofendido tenha uma queda por arcaísmos). Títulos de doutor e professor desintegram-se.Acusação de conflito de interesse: como os negacionistas magoados não conseguem imaginar um mundo em que todos não partilhem da profunda reverência que sente pela sua pseudociência de estimação,a única explicação possível para que alguém a conteste deve ser uma agenda oculta. O crítico está nos bolsos de alguma indústria ou vai se candidatar a cargo público. Evidência concreta de má prática é dispensável. Ter estado no mesmo ônibus que o segurança de uma fábrica de vacinas já basta.. Curiosamente,os acusadores – que,em geral,ganham a vida praticando a pseudociência criticada – não enxergam conflito de interesse quando se olham no espelho.Apelo bombástico à irrelevância: com a ajuda de sites de busca (e,agora,da inteligência artificial),compilam-se listas enormes de artigos e publicações supostamente,ou aparentemente,científicos,e usá-las para “bombardear” os perfis online do crítico. Não somente as postagens sobre a pseudociência em questão,mas todas,incluindo fotos na praia e festas de aniversário. Pode-se,por exemplo,colar uma relação enorme de artigos sobre homeopatia em uma postagem sobre mudança climática,ou receita de bolo. Também não tem problema se muitos dos artigos listados,na verdade,não tiverem nada a ver com o assunto ou,pior,concordarem com o crítico. A ideia geral é que o volume vai impressionar os incautos,e que ninguém vai se dar ao trabalho de checar os detalhes.

Os estágios não se seguem de forma linear: podem repetir-se ciclicamente,e em ordem alternada. Pode haver saltos abruptos de uma etapa para outra. Surtos de ataques ad hominem,padrão jardim da infância (feia,boba,baixinha,dentuça etc.) não são incomuns,bem como ameaças de ação judicial.

Como a paciência do crítico tende a ser um recurso muito menos abundante do que a falta do que fazer do negacionista magoado,este último acaba bloqueado nas redes – o que usa para cantar vitória. Conclui que estava certo desde o começo,estes críticos vendidos não aceitam o contraditório!