Clarice Lispector, a repórter: autora inovou fazendo entrevistas com estilo único e instigante

Clarice Lispector em 1964 — Foto: Arquivo / Agência O Globo

De um lado,Clarice Lispector,uma das maiores renovadoras da literatura brasileira em seu tempo. Do outro,o então treinador iniciante Mario Jorge Lobo Zagallo,bicampeão do mundo pelo Brasil como jogador de futebol e que ainda não havia assumido,naquele ano de 1968,o comando da Seleção.

O contraste de mundos é evidente,mas Clarice,que faz o papel de entrevistadora,gosta do insólito. Ao longo da conversa,ela não se contenta apenas em falar sobre os temas futebolísticos familiares a Zagallo. Uma pergunta repentina parece desconcertar o técnico,que se encontrava à beira do campo,atrasado para o treino.

“O que é o amor,Zagallo?”

Fora da sua zona de conforto,o “Velho Lobo” fica em silêncio. O leitor pode imaginar o estranho clima se instalando entre os dois. Finalmente,ele responde: “É um sentimento recíproco”.

A troca é apenas um dos muitos momentos insólitos do recém-lançado “Clarice Lispector Entrevista” (Rocco),que reúne 83 conversas (35 delas inéditas em livro) da autora com grandes personalidades. Trata-se da oportunidade de descobrir um lado menos conhecido da ucrano-brasileira,que paralelamente à sua atividade literária trabalhou por décadas na imprensa.

Clarice sendo sempre Clarice em tudo que fazia,tinha um estilo único também como entrevistadora. Era como se pegasse na mão dos entrevistados e os levasse para uma aventura: indagava sobre as suas inquietações existenciais mais íntimas e trocava confidências,muitas vezes invertendo os papéis e respondendo às perguntas deles.

— Ela fazia tudo de uma maneira própria: não satisfeita de reinventar o romance e o conto,reinventou a entrevista — diz a pesquisadora britânica Claire Williams,especialista na obra de Clarice e organizadora da edição. — Ela abordava os entrevistados à sua maneira e muitas vezes acrescentava que ela mesmo não sabia responder à pergunta que estava fazendo.

Elenco variado

As entrevistas selecionadas na coletânea foram produzidas paras as revistas “Manchete” (1968-69) e “Fatos & Fotos” (1976-77),e o livro “De corpo inteiro” (1975),que reuniu conversas previamente publicadas na “Manchete” e no “Jornal do Brasil”. O elenco de entrevistados não poderia ser mais variado. Clarice dialogava tão bem com personalidades da cultura quanto com figuras distantes do seu mundo,como o ex-governador Negrão de Lima,o treinador João Saldanha ou o ex-ministro dos transportes Mário Andreazza. Nem todo mundo entrava no jogo da escritora,mas ela quase sempre conseguia extrair respostas diferentes.

— Mesmo com grandes autoridades,como a primeira-dama Sarah Kubitschek,ela provocava — diz Claire. — Perguntou ao Alceu Amoroso Lima,por exemplo,o que ele achava da pílula anticoncepcional e o casamento dos padres. Ela não se comportava como uma “boa moça”. Fazia as perguntas que queria,sem se preocupar em seguir normas. E parecia se divertir na maior parte do tempo,ainda que em alguns casos ficasse bem claro que ela não tinha a menor vontade de estar conversando com determinadas pessoas.

Entre os interlocutores mais previsíveis,podemos citar os compositores Tom Jobim,Chico Buarque e Vinicius de Moraes; o dramaturgo Nelson Rodrigues; o cronista Rubem Braga; os atores Tarcísio Meira e Tônia Carrero; ou os romancistas Jorge Amado,Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon. Ou ainda o cirurgião plástico Ivo Pitanguy,que a operou após ser mordida no rosto por seu cão Ulisses.

Quando ficava frente à frente com amigos,o clima ficava informal,quase como uma conversa íntima de bar. Millôr Fernandes elaborou um hai-cai na hora,Chico Buarque fez um poeminha,Vinicius falou da beleza da vaidosa entrevistadora,que nunca nega um elogio. Porém,como nota Williams no prefácio,Clarice é capaz de se identificar mais com o mergulhador Bruno Hermanny do que com as socialites que é obrigada a entrevistar (“Embora em campos diferentes,ambos somos mergulhadores”,diz ela ao atleta).

No bate-papo com outros escritores,Clarice não raro revela um pouco de seu próprio processo literário,como quando conta a Marques Rebelo que nunca reescreve seus textos,apenas corta ou acrescenta. Outro tema constante é a miséria econômica da vida literária,que ironicamente obrigava Clarice a se desdobrar como entrevistadora,tradutora e cronista.

— Para mim a questão mais importante sempre foi: essas entrevistas realmente trazem algo novo sobre Clarice? — indaga a organizadora do livro. — A meu ver,sim. Não é literatura,mas revela o lado social,o contexto da época,e como ela se relacionava com as pessoas. Clarice descrevia tudo,desde o calor do ambiente até uma xícara de café,como se fossem indicações de uma peça teatral,criando uma narrativa ao redor da entrevista. Isso também reflete a criação de personagens e sua sensibilidade artística.

Trechos de entrevistas

Nelson Rodrigues,jornalista,dramaturgo e escritor

CL: Você fala em encarnação e em vidas passadas. Você é esotérico? Acredita em reencarnação?

NR: Eu sou apenas cristão,se é que eu o sou. A única coisa que me mantém de pé é a certeza da alma imortal. Eu me recuso a reduzir o ser humano à melancolia do cachorro atropelado. Que pulhas seríamos se morrêssemos com a morte.

Chico Buarque,cantor e compositor

CL: Você também tem o ar de quem é facilmente enganado: é verdade que você é crédulo ou está de olhos abertos para os charlatões?

CB: Não é que eu seja crédulo,sou é muito preguiçoso.

Jece Valadão,ator

CL: Eu acho você um perfeito cavalheiro. Mas há quem ache você um cafajeste,outros um artista sério. Qual é a verdade?

JV: Quem sabe a verdade? Por acaso ela existe ou é apenas o resultado de uma interpretação de cada um?

CL: Você é dado a fossas? E como sai delas?

JV: Nunca entro em fossas,sempre dou a volta por cima. Por isso não conheço nenhuma fórmula de sair delas.

Pablo Neruda,poeta chileno

CL: Em você o que precede a criação,é a angústia ou um estado de graça?

PN: Não conheço bem esses sentimentos. Mas não me creia insensível.

CL: Diga alguma coisa que me surpreenda.

PN: 748.

Clóvis Bornay,carnavalesco

CL: Se eu quisesse me fantasiar no carnaval,que fantasia você me aconselharia a ter?

CB: Espere,espere,já estou sabendo no nome. Achei. É “Firmamento”. Seria uma túnica de renda negra cravejada de estrelas de brilhantes. Na cabeça a meia-lua e numa das mãos uma taça de prata derramando estrelas.

Austregésilo de Athayde,presidente da ABL

CL: E agora a pergunta que todo mundo faz: o senhor admitiria a entrada de mulheres na Academia?

AdA: A objeção feita não é à entrada da mulher na Academia,e sim à reforma dos estatutos para permitir essa entrada. Os acadêmicos de três gerações consideram que não se deve alterar a lei fundamental da instituição.

Tônia Carrero

CL: Não só estou vaga como de inteligência um pouco lenta. É porque não dormi esta noite.

TC: Que é que você faz quando não dorme?

CL: Dou a noite por encerrada,esquento café e tomo.

TC: Eu também tenho muita insônia. Aconselho você a fazer palavras cruzadas e a jogar paciência e a não tomar café durante a insônia,como você faz.

Roberto Burle Marx

CL: De animais,Roberto,nós entendemos e adivinhamos porque nós também o somos. Mas de vegetação e paisagem,o que temos dentro de nós que nos faz amá-las e entendê-las?

RBM: É o ciclo de vida até que a planta se transforma em frutos,que por sua vez contêm sementes e todos os elementos para ser raiz,tronco e folhas.

Carlinhos de Oliveira

CL: Estou vendo a hora em que começaremos,dentro de toda a amizade,a brigar. Também posso lhe dizer que,se viver é beber no Antonio’s,isso é pouco para mim. Quero mais porque minha sede é maior que a sua.

CdO: Evidentemente.

CL: Eu gosto muito de você,Carlinhos.

CO: Mas aqui não estávamos falando de amizade,e sim mostrando que uma escritora como Clarice Lispector,em vez de comer e beber comigo,tem que pensar em entrevistas para poder sobreviver. É por isso que eu digo: devemos jogar uma bomba atômica na Academia Brasileira de Letras.

Serviço: ‘Clarice Lispector entrevista’. Autora: Clarice Lispector. Editora: Rocco. Páginas: 420. Preço: R$ 109,90.