Plataformas digitais, concorrência e desenvolvimento

Plataformas digitais — Foto: Arun Sankar/AFP

O Ministério da Fazenda divulgou há alguns dias um relatório que destaca a necessidade urgente de regular as plataformas digitais sob a ótica da concorrência,classificando essa medida como essencial para o futuro econômico do Brasil. Propõe mudanças na Lei de Defesa da Concorrência e no Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência,além de sugerir o fortalecimento do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para lidar com questões envolvendo essas plataformas.

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Essa posição diverge do Projeto de Lei 2.768,em tramitação no Congresso desde 2020,que propõe à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel),com funções ampliadas,assumir a regulação das plataformas digitais. Enquanto o debate sobre qual órgão regulador deve assumir esse papel domina as discussões públicas,outros aspectos relevantes do relatório têm sido menos discutidos.

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Uma das contribuições mais significativas do ministério é apresentar evidências inéditas que mostram como a economia digital brasileira está concentrada em poucas empresas. Com base numa análise de redes,o relatório revela que o grupo Gafam (Google/Alphabet,Amazon,Facebook/Meta,Apple e Microsoft) tem presença dominante no ecossistema digital do país,com sobreposição de múltiplos serviços e posição central. A concentração contrasta com os grupos nacionais,que ocupam posições periféricas na rede,oferecem menos serviços complementares e são dependentes do Gafam.

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Associações patronais e think tanks financiados por big techs responderam rapidamente,alegando que uma regulação mais rígida poderia sufocar a inovação. Contudo,como argumenta Anu Bradford,professora da Escola de Direito de Columbia,essa dicotomia entre inovação e regulação é uma falácia. Segundo Bradford,o debate deve se voltar para reformas legais e institucionais que incentivem a inovação sem comprometer o equilíbrio econômico.

Outro ponto presente no relatório e pouco discutido é o excessivo otimismo da Fazenda em relação ao potencial das plataformas digitais para impulsionar o desenvolvimento econômico e aumentar a produtividade no Brasil. Faltam evidências conclusivas que comprovem essa visão,e há dois problemas principais em associar essas plataformas ao aumento da produtividade.

O primeiro é a falta de clareza sobre o que exatamente significa produtividade. O relatório compara a receita por funcionário entre plataformas digitais e empresas tradicionais,sugerindo maior eficiência das plataformas. No entanto não há evidências de que isso resulte em ganhos reais de produtividade em nível nacional. Mesmo quando os dados são expandidos para incluir outras tecnologias digitais,os resultados continuam limitados.

O segundo problema é que o modelo de governança da economia digital promovido pelas plataformas pode dificultar a distribuição justa dos eventuais ganhos de produtividade. A Fazenda sugere que o Estado deve apoiar esse “modelo de negócios” e regular suas regras de competição,destacando o número de “unicórnios” e seu valor de mercado. No entanto esses indicadores,mais associados ao capital de risco,podem não refletir aumento real da produtividade total. Essa abordagem,voltada para poucos vencedores,é o que o economista Daron Acemoglu,ganhador do Nobel deste ano,chama “distopia digital” — a automação concentra os ganhos de produtividade no capital.

Embora o foco da Fazenda em produtividade possa estar superestimado,representa um passo importante para posicionar o governo brasileiro no debate sobre a economia de plataformas. No entanto os desafios para garantir inovação,competitividade,produtividade e desenvolvimento econômico permanecem grandes,especialmente num cenário global de busca por soberania digital,enquanto o modelo de plataformas segue transformando comportamentos sociais,culturais e políticos.

*Tulio Chiarini é pesquisador do Centro de Pesquisa em Ciência,Tecnologia e Sociedade do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada