Após acabar com política do filho único, China estabelece meta de três filhos por família para enfrentar crise de natalidade

Avó passeia com neta em frente a escultura que incentiva família com três filhos na China — Foto: Guillermo Abril/El País

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GERADO EM: 15/10/2024 - 04:30

China incentiva três filhos por família para combater baixa natalidade: impactos sociais e estratégias governamentais.

Após décadas da política do filho único,a China agora incentiva três filhos por família para combater a baixa natalidade. Estratégias vão desde casamentos em massa até ligações telefônicas pressionando casais. O governo centraliza propagandas pró-família e implementa medidas abrangentes,apesar de críticas e desafios sociais em um contexto global de declínio na taxa de fertilidade. O Estado aumenta o controle sobre a vida privada,incluindo casais recém-casados,gerando debates e preocupações. Medidas como casamentos em grupo e subsídios para jovens casais visam promover a maternidade. Opiniões divergem entre os cidadãos,com destaque para a importância da acessibilidade a tecnologias de reprodução assistida.

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No centro de um parque,uma escultura em tamanho real de um pai,uma mãe e três filhos de mãos dadas serve de propaganda do governo chinês para promover o que as autoridades chamam de “nova cultura de casamento e maternidade”. A peça é acompanhada por um slogan de incentivo: "Case-se e tenha filhos na idade certa". Após três décadas adotando a política do filho único,abandonada há oito anos,a nova meta de Pequim para enfrentar os baixos índices de fecundidade é três filhos por família. Hoje,poucas famílias chinesas têm tantos membros,mas diante da primeira queda populacional desde a Grande fome dos anos 1960,o governo tem incentivado seus cidadãos a procriar com táticas que variam de casamentos em massa a ligações telefônicas incentivando casais a entrarem em ação.

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Miyun,um distrito de meio milhão de habitantes a nordeste de Pequim,é a área piloto designada pelo governo para implementar o novo dogma,com o parque fazendo parte do programa. Além da escultura,diversos painéis ocupam o calçadão com perguntas comuns da infância para permitir que “o público em geral aceite a nova cultura de casamento e gravidez em suas vidas diárias de forma sutil”,segundo um artigo da Associação de Planejamento Familiar local. O distrito também montou uma equipe de quase 500 pessoas dedicadas à “propaganda da nova cultura de casamento e gravidez”,acrescenta.

Essas novas células de promoção cultural não são grande coisa: uma delas,visitada pelo El País,consistia em uma equipe de três mulheres que atendiam e faziam ligações de um pequeno escritório localizado no quinto andar de um dos centros de serviços comunitários locais do Partido Comunista.

— Se o governo não incentivar,em 20 ou 30 anos haverá muito menos pessoas e muitas carências: falta de trabalhadores,casas vazias... Mas,devido à pressão da vida atual,há muitas pessoas que não querem nem ter um filho — diz uma avó de 64 anos que passeia com sua neta de três anos pela escultura dos três filhos em Miyun.

Seu filho e sua nora,ela explica,trabalham e é ela quem cuida deles enquanto isso. Eles também têm outro filho,que tem seis anos de idade,mas não querem um terceiro: “Os custos são muito altos”,diz ela,afirmando que,por outro lado,ficou chocada com a política do filho único: “Queríamos ter mais,mas não era possível."

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Política do filho único

Pequim abandonou a política do filho único em 2016,após três décadas e meia de controle populacional extremo que marcou profundamente o país. A China de hoje é um reino de filhos únicos. Mas também deixou marcas trágicas,especialmente nas mulheres,devido aos abortos seletivos e ao abandono de meninas recém-nascidas.

O anúncio da política de dois filhos foi recebido na China com “entusiasmo e esperança”,diz a antropóloga Susan Greenhalgh,professora emérita de Sociedade Chinesa da Universidade Harvard,em um artigo recente. Parecia um sinal de que o governo havia “ouvido as demandas da população e aberto o círculo da liberdade após um longo inverno de descontentamento reprodutivo”.

O anúncio em 2021 da política de três filhos,entretanto,“foi um grande golpe”,continua ela. “Agora estava claro que,em vez de os cidadãos terem voz em seus próprios assuntos,as pessoas eram meramente objetos passivos de controle por um governo autoritário preocupado apenas com números agregados”,escreveu em um texto publicado no Made in China Journal.

A implementação da política está planejada em etapas. E o governo decretou que as Forças Armadas assumirão a liderança. Pequim aprovou medidas que incentivam “os militares a se casarem e terem filhos em idades apropriadas e a considerar a possibilidade de ter três”,conforme relatado no ano passado no Diário do Povo,órgão de propaganda do Partido Comunista.

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“O que acontecerá quando o Estado estender a aplicação da lei além dos militares para setores da sociedade onde a política é profundamente impopular?”,pergunta a antropóloga. “Como as feministas chinesas e outros jovens que buscam a liberdade reagirão quando as pressões sobre eles começarem a aumentar?

No ano passado,o presidente chinês Xi Jinping pediu à liderança da Federação Nacional de Mulheres de toda a China que “orientasse as mulheres a desempenhar um papel único na promoção das virtudes tradicionais da nação chinesa e no estabelecimento de bons costumes familiares”.

— Somente quando as famílias são harmoniosas,bem-educadas e têm uma cultura familiar decente,as crianças podem crescer saudáveis e a sociedade pode se desenvolver adequadamente — enfatizou.

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O tom de seu discurso foi muito mais conservador do que em sua reunião anterior com a organização,em 2018. Naquela ocasião,ele não mencionou “casamento” ou “maternidade”,mas se referiu até seis vezes à “igualdade” entre homens e mulheres. No entanto,em 2023,a situação se inverteu,e o partido deixou claro que a família e a tradição eram os novos pontos centrais da sua agenda.

Vida privada

Assim como o discurso do líder chinês se tornou mais tradicionalista,o nível de intrusão do Estado na vida privada das mulheres se intensificou. Em 2022,o South China Morning Post (SCMP) de Hong Kong relatou um aumento no número de casais recém-casados que receberam ligações das autoridades incentivando-os a ter filhos,uma prática que outros meios de comunicação relataram que continua a ser a ordem do dia.

"O governo [de Nanjing] quer que os recém-casados engravidem em menos de um ano e pretende ligar para eles a cada trimestre”,relatou um usuário no Weibo (uma plataforma chinesa semelhante ao X). Sua publicação foi inundada com comentários detalhando experiências semelhantes: “Eles disseram: você é casada,por que não está se preparando para engravidar?”; “Na primeira vez,eles me perguntaram se eu estava tomando ácido fólico e se estava me preparando para engravidar. Na segunda vez,eles foram direto ao ponto: você já está grávida?”,relatou o SCMP.

Em um país onde a mídia é rigidamente controlada pelo governo,a rede social deixa algum espaço para os cidadãos expressarem suas preocupações e debaterem questões de interesse público. Pelo menos,até a chegada da censura.

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Por exemplo,alguns municípios adotaram recentemente estratégias para promover o “casamento e a maternidade em uma idade apropriada”,como oferecer o equivalente a 130 euros para noivas que se casem antes dos 25 anos ou enviar mensagens de texto desejando “doce amor,casamento e fertilidade” no Dia dos Namorados.

Outras iniciativas são divulgadas na mídia chinesa,como os casamentos em grupo. Um dos mais recentes foi realizado em Ningbo,onde uma dúzia de casais recebeu uma bênção de um casal que estava comemorando seu aniversário de bodas de diamante (60 anos de casamento) e leu os votos conjuntos,comprometendo-se a viver de acordo com os valores do casamento e da paternidade.

Ying,36 anos,teve seu primeiro filho em agosto. No Hospital de Obstetrícia e Ginecologia de Pequim,onde foi com o marido para fazer um check-up do bebê,ela diz que não descarta a possibilidade de ter outro “em breve”. No entanto,ela está ciente de que nem todo mundo pode pagar por isso: ela tem o apoio de seus pais e sogros.

— Alguns de meus colegas não têm essa sorte — admite. — Nunca pensei em ser mãe antes,mas quando conheci meu parceiro,minhas prioridades mudaram.

Ying diz que não foi pressionada a tomar o que,em suas palavras,foi a decisão mais importante de sua vida,embora afirme estar ciente de que o governo está “incentivando” as pessoas a terem mais filhos. Ela aplaude o fato de que,desde o ano passado,o sistema de previdência social de Pequim cobre a reprodução assistida — conjunto de técnicas,à qual ela teve que recorrer,que permite que pessoas inférteis possam ter filho. Mas admite que o sistema deveria ser “acessível a todos,para evitar frustrações”. Hoje,o sistema só permite que mulheres casadas tenham acesso a essa tecnologia