Futebol feminino: A proibição que sabotou evolução do esporte no Brasil

Time de futebol feminino do Vasco,nos anos 1920 — Foto: Reprodução/Revista Careta

RESUMO

Sem tempo? Ferramenta de IA resume para você

GERADO EM: 10/08/2024 - 06:00

"Resiliência e superação: a trajetória do futebol feminino no Brasil"

O futebol feminino no Brasil teve sua evolução sabotada por decreto-lei durante 38 anos,sob alegação de ser "incompatível com a natureza" das mulheres. Após a proibição,o esporte só foi regulamentado em 1983. A seleção brasileira demonstra resiliência ao conquistar sucesso nos Jogos de Paris,relembrando as décadas de luta e obstáculos enfrentados. Essa história reflete um cenário global de discriminação e atraso para o futebol feminino em contraste com o masculino.

O Irineu é a iniciativa do GLOBO para oferecer aplicações de inteligência artificial aos leitores. Toda a produção de conteúdo com o uso do Irineu é supervisionada por jornalistas.

LEIA AQUI

A seleção brasileira de futebol feminino está brilhando nos Jogos de Paris e já garantiu a sua terceira medalha olímpica ao se classificar para a final do torneio,que será disputada neste sábado,contra os Estados Unidos. Mais do que um resultado excelente,a conquista na França coroa a resiliência das mulheres,que tiveram a sua evolução nesse esporte sabotada pelos homens no século passado.

Final de futebol feminino: Saiba como assistir ao confronto entre Brasil e EUAMedalhista em dois jogos:"Está na hora de Brasil mudar história do futebol feminino"

Nas décadas de 1920 e 1930,o futebol feminino estava em ascensão no Brasil,com vários clubes sendo criados e disputando partidas entre si. Em 1940,dois times de mulheres se enfrentaram no estádio do Pacaembu,em São Paulo,diante de mais de 60 mil torcedores,em um jogo preliminar. Mas a reação de setores conservadores da sociedade brasileira sabotaram o movimento.

Acervo O GLOBO: Todas as edições do GLOBO desde 1925 digitalizadas para sua pesquisa

Na época,o Brasil vivia a ditadura do Estado Novo,com um governo que insistia em determinar regras de comportamento pra sociedade. Um ano depois do amistoso em São Paulo,o regime de Getúlio Vargas editou um decreto-lei proibindo as mulheres de jogar bola,afirmando que o esporte era incompatível com a natureza delas. A proibição durou 38 anos e só foi derrubada em 1979.

Matéria do Diário Paulistano sobre jogo de futebol feminino no Pacaembu,em 1940 — Foto: Reprodução

O futebol chegou ao país praticado por homens ricos,mas o esporte se disseminou no início do século XX e caiu nas graças da população. A partir daí,muitas mulheres começaram a jogar bola também.

Quadro de medalhas: Confira o ranking atualizado das Olimpíadas de Paris Campeã em Paris-2024: "O judô ajudou a me aceitar e virei meu padrão de beleza"

No livro “Futebol feminino no Brasil” (2023),a pesquisadora Aira Bonfim conta que surgiram vários times de mulheres no Rio. Eram equipes ligadas a clubes como o pioneiro Vasco da Gama,que tinha um elenco todo formado por torcedoras,e times independentes criados por moradoras dos subúrbios. O futebol de mulheres também era atração circos itinerantes,o que ajudou a divulgar a prática.

Mas não demorou até o lado reacionário da sociedade criar obstáculos. Em maio de 1940,dois times de mulheres da periferia do Rio,o Casino do Realengo e o Sports Club Brasileiro,disputaram a partida preliminar de um jogo entre São Paulo e Flamengo no então recém-inaugurado estádio do Pacaembu,que estava lotado com cerca de 65 mil pessoas assistindo nas arquibancadas.

Dez dias antes do amistoso,o jornal Diário da Noite publicou uma carta de um cidadão chamado José Fuzeira endereçada ao presidente Getúlio Vargas. Fuzeira já tinha escrito um livro “Judas Iscariotes e a sua reencarnação como Joana D’Arc”. Ele não era uma voz conhecida no Brasil,mas a carta no Diário da Noite,com o título de "Um disparate sportivo que não deve prosseguir",ganhou repercussão.

Chamada para carta repudiando futebol feminino no Diário da Noite,em 1940 — Foto: Reprodução

O texto dizia que mulher nasceu para ser mãe e que o futebol feminino seria uma calamidade para as jovens do país. "(...) dentro de um ano é provável que em todo o Brasil estejam organizados uns 200 clubes femininos,ou seja,200 núcleos destroçadores da saúde de 2200 futuras mães",especulava a carta,que terminava fazendo um apelo ao presidente: "acuda e salve essas futuras mães do risco de destruírem sua preciosa saúde e a saúde dos futuros filhos delas… e do Brasil".

O jogo no Pacaembu foi um sucesso e chegou a ser elogiado por parte da imprensa,mas também serviu de gatilho para reações machistas. O jornal O Dia Esportivo,de Curitiba,por exemplo,publicou o texto de um médico dizendo que o futebol poderia prejudicar o equilíbrio endócrino da mulher.

Em janeiro de 1941,a fundadora do Primavera Atlético Clube,Carlota Alves de Resende,conhecida como Dona Carlota,figura central para o futebol feminino no subúrbio do Rio,foi presa acusada de aliciar meninas pobres para prostituição. Sua casa,onde ficava a sede do clube,foi chamada de "antro da perdição". Como não havia provas,Carlota foi solta em 48 horas. Mas ficou a marca da repressão.

Três meses depois,Getúlio Vargas editou o decreto-lei que fechou a porta para o futebol feminino no Brasil durante 38 anos. "Às mulheres,não se permitirá a prática de desportos incompativeis com as condições de sua natureza,devendo,para este efeito,o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país",dizia o texto no artigo 54.

Capa de jornal sobre a prisão de Dona Carlota — Foto: Reprodução

A regra não listava que modalidades estavam vetadas a partir daquele momento,mas não houve dúvidas de que o futebol era uma delas. Já em 1965,no primeiro ano da ditadura militar,a norma foi regulamentada deixando mais claro: "Não é permitida a prática de lutas de qualquer natureza,futebol,futebol de salão,futebol de praia,pólo aquático,pólo,rugby,halterofilismo e beisebol".

Enquanto o decreto de Vargas esteve de pé,foram realizados alguns jogos recreativos entre mulheres,mas a proibição impediu qualquer movimento de se desenvolver. O veto só foi derrubado em 1979 e,em 1983,o futebol feminino foi finalmente regulamentado no Brasil.

Em outros países,a história foi parecida. No Reino Unido,em 1921,a Federação Inglesa de Futebol proibiu partidas entre mulheres em campos ligados à entidade. Na Bélgica,uma barreira semelhante foi criada na década de 1920,citando razões médicas. Na Alemanha Ocidental,o futebol feminino ficou banido de 1955 a 1970. Durante o período,a polícia reprimia mulheres que jogassem bola.

No mundo inteiro,enquanto o futebol masculino se desenvolvia,ganhando popularidade e recebendo muito investimento,o futebol feminino ficou estagnado durante décadas,A primeira Copa do Mundo entre homens aconteceu em 1930,mas o primeiro Mundial entre mulheres só foi realizado em 1991. Nas Olimpíadas,o futebol masculino foi aceito em 1908,enquanto o feminino,somente em 1996.

Seleção brasileira que participou da primeira Copa do Mundo de Futebol Feminino — Foto: Reprodução/Museu do Futebol