Relógio é o que menos importa na decisão do TCU que autorizou Lula a ficar com presentes

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante conversa com agências de notícias internacionais no Palácio do Planalto — Foto: Evaristo Sá/AFP

Não deixa de ser insólito que a discussão do momento na política brasileira seja sobre Lula devolver ou não um relógio de R$ 60 mil recebido de presente da Cartier em 2005 numa visita à França. Não que o episódio seja irrelevante. Se o Brasil ficasse na Escandinávia,o caso teria sido motivo de escândalo.

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Mas não há escândalo hoje,não houve lá em 2005,e a única razão pela qual o assunto entrou na pauta do Tribunal de Contas da União (TCU) foi a representação de um deputado do PL que pedia que o presidente devolvesse o relógio,mas que no fundo torcia para que o TCU livrasse Lula e,por tabela,ajudasse também Jair Bolsonaro a se safar de uma denúncia por se apropriar dos presentes do príncipe da Arábia Saudita e tentar vendê-los depois de deixar o governo.

Entre os regalos sauditas que o ex-presidente levou consigo estão não só relógios,mas também joias e esculturas de ouro e prata que,no conjunto,valem R$ 7 milhões. É muito mais do que o Cartier de Lula,sem contar o agravante de que Bolsonaro ainda tinha à disposição um time de atravessadores para repassar as peças em joalherias americanas.

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A Polícia Federal pediu que o Supremo Tribunal Federal (STF) processe Jair por peculato (nome que o Código Penal dá ao desvio de bens públicos),associação criminosa e lavagem de dinheiro. O inquérito está na Procuradoria-Geral da República (PGR),que ainda tem de decidir se denuncia ou não o ex-presidente.

De Dom José a Bolsonaro: veja presentes recebidos pelos chefes de Estado no Brasil

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O rei Adandozan,que abastecia o tráfico negreiro,deu a Dom João VI um trono em madeira,chamado de "zinkpo",que foi destruído pelo fogo no incêndio do Museu Nacional. — Foto: Arquivo

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Era também de Dom João VI o relógio destruído por bolsonaristas nos atos golpistas de 8 de janeiro em Brasília — Foto: Arquivo

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A Quinta da Boa Vista",na época chamada de "Quinta do Elias",também foi um presente Dom João VI,oferecido pelo comerciante Elias Antônio Lopes — Foto: Arquivo

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Em uma viagem para o Egito,Dom Pedro II foi presenteado com uma múmia da sacerdotisa e cantora Sha Amin Em Su — Foto: Arquivo

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Há tempos,os presentes a chefes de estado são alvos de críticas. Charge publicada na revista D. Quixote mostra o então presidente,Epitácio Pessoa,ao chegar ao Brasil,vindo de suas viagens na Europa e nos Estados Unidos,cheio de condecorações,o que não era permitido na época. "Diante de tantas condecorações,a Constituição se esconde corada",diz a legenda — Foto: Biblioteca Nacional

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Outra charge publicada na revista O Malho retrata Epitácio Pessoa na proa de um navio cheio de medalhas. “Para traze-lo foi necessário o maior navio do mundo”,diz a legenda. Receber condecorações não era permitido pela Constituição vigente — Foto: Biblioteca Nacional

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O Rolls-Royce da Presidência,fabricado em 1952,foi um presente do empresário Assis Chateaubriand a Getúlio Vargas — Foto: Arquivo

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Getúlio Vargas gostava de ganhar livros. Acervo permanece até hoje no Museu da República no Catete — Foto: Arquivo

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FH reúne em sua fundação uma coleção de presentes,como um machado da Eslováquia — Foto: Arquivo

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Entre as curiosidades dos presentes de Lula,um par de chifes — Foto: Arquivo

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Entre os presentes recebidos por Dilma ao longo de seus governos,estão pinturas feitas por crianças — Foto: Arquivo

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Um estojo em metal prateado polido foi presente de Donald Trump para a posse de Bolsonaro — Foto: Divulgação

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Publicidade Reis e presidentes receberam de caixão africano a múmia egípcia

Pois na sessão de ontem o Tribunal de Contas não só deliberou que Lula não precisa devolver o relógio,como enviará ao Congresso Nacional a cópia do resultado do julgamento “reconhecendo” que “não há fundamentação jurídica para caracterização de presentes recebidos por presidentes da República no exercício do mandato como bens públicos,o que inviabiliza a possibilidade de expedição de determinação,por esta Corte,para sua incorporação ao patrimônio público”. Em teoria,o alerta deveria servir para que o Legislativo discutisse e aprovasse uma lei regulamentando afinal os presentes.

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Alguém acha que o fará?

Por enquanto,a decisão vale para Lula,mas,se o próprio TCU diz que não há regra sobre presentes,é razoável supor que fará o mesmo com Bolsonaro. Não à toa,dos 5 votos que formaram a maioria de ontem,3 foram de ministros ligados a ele.

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O movimento do TCU foi amplamente discutido nos bastidores e representou um cavalo de pau na conclusão do tribunal sobre o mesmo assunto em 2016. Na ocasião,o relator Walton Alencar estudou as leis disponíveis e diferenciou os objetos de luxo do que chamou de “itens de uso personalíssimo”.

Coisas de pouco valor e uso estritamente pessoal poderiam ficar com os ex-presidentes,enquanto joias e itens de valor — incluindo relógios — teriam de ser devolvidos ao patrimônio público. Foi aí que o plenário determinou que Dilma Rousseff e Lula devolvessem 564 itens que tinham recebido em seus mandatos.

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Ontem,porém,parecia que nada disso tinha acontecido. Em meio às piruetas retóricas adotadas para concluir que nenhum presidente precisa devolver mais nada,vários ministros comentaram,como se fosse a coisa mais natural,que até hoje não foram entregues nem os 564 itens listados pelo TCU,nem outros 4 mil que foram recebidos e registrados nos governos Dilma e Lula,mas desapareceram dos acervos públicos.

De acordo com Walton Alencar,a Polícia Federal procurou,mas não encontrou nenhum deles. O Cartier não estava entre esses objetos,porque não chegou sequer a ser catalogado.

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Guinada no tribunal

Ao final da sessão,Lula e Bolsonaro podiam se considerar vencedores. Numa mesma decisão,o tribunal que deveria fiscalizar o uso dos recursos públicos optou por não fazê-lo,equiparando e anistiando os dois.

Como resumiu o ministro Alencar em seu voto,derrotado ontem,com essa guinada o tribunal na prática está autorizando qualquer pessoa interessada em vantagens no governo a dar presentes milionários aos presidentes sem sofrer qualquer sanção na Corte.

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A esta altura,não dá para dizer se e como a decisão do TCU vai afetar os próximos movimentos da PGR e do Supremo. Também sempre haverá quem diga que o caso de Lula não permite nenhuma comparação com o de Bolsonaro.

Ou,ainda,que um relógio não é nada diante das negociatas da Covid,dos kits de robótica,das obras da Codevasf,dos descontos bilionários e inexplicáveis em multas por corrupção ou dos esdrúxulos perdões administrativos que se produziram no passado e continuam a ser maquinados nas sombras do poder. Tudo isso é verdade. O problema é que,no fundo,este não é um texto sobre relógios.